O artigo 245 da Constituição de 1988 obriga a União a dar atenção especial às pessoas vítimas de crimes e seus dependentes. Mas somente agora é que a sociedade está dando importância para isso. A crescente expansão da violência produz vítimas ocultas, além das pessoas diretamente atingidas com a ação de criminosos. São pais, amigos, familiares e conhecidos que ficam traumatizados com a situação, muitas vezes ando o resto da vida sem conseguir superar a crise.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a cada 13 minutos uma pessoa é assassinada no Brasil. Assim, são 110 cidadãos morrendo por causa da violência por dia. Contando que uma família, em média, é composta por outros quatro integrantes, pelo menos 440 familiares precisam lidar com a dolorosa notícia da morte violenta diariamente. Dados do órgão também apontam que os jovens, de qualquer classe social, são os mais expostos aos riscos das armas de fogo. Eles têm 4,5 vezes mais chances de morrer em virtude da violência do que o restante da população.
Seqüelas físicas e psicológicas acompanham as pessoas que aram pelo trauma, apesar de não terem ligação direta com o crime. Muitas delas desenvolvem a desordem de estresse pós-trauma (DEPT), segundo Gláucio Soares, professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, ligado à Universidade Cândido Mendes. Ele fez um estudo, financiado pela Fundação Carlos Chagas Fundo de Amparo a Pesquisas no Estado do Rio de Janeiro (Faperj), sobre as vítimas ocultas da violência no Rio de Janeiro. “Quando a pessoa vê o corpo de alguém atropelado, é doloroso, mas acaba por aí. As vítimas ocultas têm mais dificuldade com o homicídio do que em suicídios ou acidentes, pois é um processo mais longo de desgaste”, afirma.
A pesquisa mostra que os familiares ou amigos que fazem o reconhecimento do corpo são os que mais sofrem com a morte. “O reconhecimento deixa marcas profundas”, comenta o professor. As reações físicas (fortes dores de cabeça, enjôos, vômitos), o flashback (lembranças que aparecem sobre a morte sem que a pessoa queira) e a anestesia emocional atingem 40% das pessoas que aram pelo reconhecimento, contra 17% dos que não fizeram este processo ou não viram o cadáver. “Também existe a co-morbidade, caracterizada pelo trauma acompanhado de outras doenças, em particular a depressão. Mas não é todo mundo que desenvolve os sintomas”, lembra Soares. O estudo detectou que 45% das mulheres e 29% dos homens se lembram da morte quase todos os dias. Os parentes e amigos que nunca se lembram do ocorrido são poucos, representando apenas 6% das mulheres e 11% dos homens.
Para ele, o fato de muitas pessoas acreditarem que é preciso ver o corpo para fechar um ciclo não se aplica nas mortes violentas. “Isso funciona para os casos de desaparecimento ou de atentados. Às vezes não é preciso ver o corpo, mas ter a certeza da morte, o que é diferente de homicídios”, esclarece o pesquisador.
Tempo
Soares explica que algumas pessoas alcançam a diminuição dos sintomas conforme o ar do tempo. Um grupo, porém, não consegue se livrar dos distúrbios. O estudo realizado por ele constatou que há uma tendência de as vítimas ocultas se isolarem e não procurarem ajuda. De cada 25 entrevistados, apenas um procurou tratamento psicológico. “A terapia não é bem vista por muitos em uma subcultura. A população não sabe que existem recursos gratuitos neste sentido. Normalmente, quem busca apoio, melhora. Quatro em cada cinco entrevistados que foram procurar ajuda disseram que melhoraram. Mas é uma fração muito pequena do total de vítimas”, avalia o professor.
Mãe de vítima reclama da falta de apoio
O estudante Rafael Zanella, à época com 20 anos, foi morto em 1997 próximo de sua casa, no bairro de Santa Felicidade, em Curitiba. Às 9h da noite, estava indo jogar futebol com os amigos, quando foi abordado por policiais que faziam uma suposta blitz. Enquanto estacionava o carro, Rafael foi atingido por uma bala na nuca. Os policiais decidiram incriminar o jovem, colocando drogas e armas no carro. A inocência dele foi provada durante as investigações.
A mãe de Rafael, Elisabetha Zanella, acredita que faltou justamente a assistência psicológica para a família após o crime. Ela conta que na época não procurou especialistas por não ter condições financeiras: “Os recursos foram direcionados aos advogados. Tivemos que nos reerguer sozinhos. Foi muito difícil. Com toda a dor, não conseguimos trabalhar”, afirma. Ela, o marido e os dois filhos estão começando a se recuperar só agora. “Durante esses sete anos, a gente realmente viveu em função da tragédia. Hoje estamos acordando que a vida continua. Se tivesse a ajuda antes, talvez poderia ter nos resgatado mais cedo”.
De acordo com ela, a família se desestruturou e somente o amor que sentiam um pelo outro não permitiu que se separassem. A mãe comenta que o desgaste foi intenso, pois além de perder um filho, teve que lutar por justiça. “Nós sofremos ameaças por um ano. Isso e a morte de Rafael fizeram com que os meus dois filhos perdessem a juventude. Eles ficaram com trauma. À noite eles não saem”, conta Elisabetha.
Ela lembra que teve vontade de sair do País por muitas vezes ao constatar a falta de estrutura e de responsabilidade por parte do governo, ainda mais por envolver a polícia. “É um quadro que precisa ser mudado. Altos impostos são pagos e não se tem retorno. Preferia a que o Rafael tivesse cruzado com marginais. Eles levam as coisas, mas não tiram a vida se ninguém reagir. A segurança precisa ser prioridade. A polícia precisa estar bem preparada”, comenta.
Elisabetha diz que ainda não consegue perdoar as pessoas que tiraram a vida de seu filho. Oito policiais se envolveram com o crime. Já foram julgadas quatro pessoas e três delas acabaram condenadas. Ainda faltam alguns julgamentos com júri popular para encerrar o caso. O processo está parado porque um novo promotor foi designado, pois o antigo faleceu no começo do ano. (JC)
Medo leva ao isolamento da população
Os constantes casos de violência nos centros urbanos está desencadeando o medo na população. Mesmo aquelas pessoas que nunca sofreram com o crime, direta ou indiretamente, estão assustadas com o que pode acontecer. Segundo o psicólogo Rubens Marcondes Weber, a violência no Brasil se tornou uma doença social.
Ele afirma que atualmente as pessoas já não têm muito contato com outras, mas que o isolamento é crescente por precaução. “Quando você coloca um sistema de segurança, de certa forma vai se isolando cada vez mais. Muitos evitam ajudar alguém com necessidade por medo, esperando sempre o pior”, explica.
O psicólogo acredita que falta uma política pública para a assistência às vítimas ocultas e aos cidadãos de maneira geral. “Em qualquer lugar, a saída imediata seria colocar mais policiais na rua. Mas não deveria ser somente isso. Se alguém vê um crime na rua, não denuncia porque sabe que existe a fragilidade da polícia e da Justiça”, comenta.
Para Weber, a população se sente desamparada por causa disso e acaba tomando atitudes próprias para evitar o alcance da violência. Os habitantes de grandes cidades sempre pensam que podem ser as próximas vítimas. Na tentativa de se proteger, vivem em uma paranóia de cuidados. “Os bandidos estão vendo isso e mudam as estratégias. Antes mesmo de acontecer, as pessoas já têm medo. Se ocorre, pensa em qual ponto falhou. No lugar de lidar com a situação diretamente, procura uma melhor sistema de segurança”, relata. É preciso ter cuidado e muito bom senso para não cair em um eterno recolhimento.
Política pública
Para atender aos anseios das vítimas, o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), está incentivando a criação de centros de assistência e apoio a vítimas de crimes desde 1999. Os primeiros estados brasileiros a participar do trabalho foram Santa Catarina, Paraíba, São Paulo e Minas Gerais.
Recentemente, a SEDH divulgou que o Paraná ou a integrar o Programa de Apoio e Proteção a Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas de Violência (Provita), que fornece apoio jurídico, psicossocial, proteção à integridade física e psíquica de testemunhas, vítimas ou familiares que estiverem sob ameaças por serem colaboradores em processos de investigação.
O procurador Olímpio de Sá Sotto Maior, do Ministério Público Estadual, explica que uma proposta foi enviada para a SEDH para a implantação do programa no Paraná. “Tudo já foi acenado publicamente e agora estamos iniciando as conversas”, comunica. (JC)
Entidade transforma a dor em lição de solidariedade
O conforto em uma hora como essa é praticamente inatingível. A mistura de sensações não deixa a vítima oculta pensar direito no momento em que precisa ser forte.
O filho de Valéria Velasco, presidente do Comitê Nacional de Vítimas de Violência (Convivi), com sede em Brasília, foi morto por uma gangue de jovens de classe média que cometiam pequenos delitos na capital federal. Marco Antônio Velasco (com 16 anos na época) estudava no mesmo colégio de um dos líderes do grupo. Uma briga, em 1993, motivada por integrantes do bando, resultou em ferimentos e hematomas em dois amigos de Marco, que fugiram para a casa dele sob ameaças de morte se aparecessem na escola no dia seguinte. “O Marquinho não tinha participado da briga. A gangue voltou à tarde para bater nos garotos. Coincidentemente, foi a hora em que meu filho foi buscar pão, às 5 horas da tarde. Na saída da padaria, cruzaram com ele e bateram até matar”, relembra Valéria.
Ela conta que a primeira reação foi ter vontade de morrer também, pela necessidade de encontrar o filho e pela culpa de não ter conseguido socorrer enquanto era tempo. “Morrer não ia acabar com tudo. Tinha os outros filhos e ei a perceber que não dava para fazer isso”, afirma a jornalista.
Depois de tanta luta e de acompanhar tantos casos parecidos com o seu, Valéria descobriu que a melhor forma de apoio é participar de movimentos em busca da paz. Ela começou com a elaboração de um abaixo-assinado, e ou a visitar as famílias que tinham perdido pessoas queridas por causa da violência. “Assim surgiu o movimento, na tentativa de se unir contra a violência. Como organização não governamental, o comitê ou a funcionar em 1999”, esclarece.
Para ela, o tempo não reduz a dor, mas ensina como conviver com ela: “Não deixo de pensar no meu filho e controlar o filme que a na cabeça. Mas a gente consegue ficar mais forte”. As conversas com pessoas que aram pela mesma situação é o que ajuda no início da reabilitação, referência proporcionada pelo comitê. Muitas vezes, as vítimas ocultas desejam a vingança ou o suicídio. “Fico feliz de ver como elas se modificam e ganham uma nova forma de encarar a vida.” (JC)
